segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Pequenas verdades diárias

  
"Eu me dei conta que tudo é exercício para estar acompanhado. Arrumar a cama, por exemplo. Há gente que coloca o cobertor fincado internamente nas bordas do colchão, revelando índole possessiva e ciumenta. Há gente que deixa o cobertor solto, mostrando desapego e sociabilidade. Há gente que nem ajeita, denunciando solidão e independência.  Vejo um temperamento nas banalidades. Eu dobro o lençol como aba de envelope sobre o cobertor. Minha avó me alertou: “Cobertor é masculino, lençol é feminino”. Faz sentido: ambos estão casados, esperando nosso olhar (o que explica que a cama se encontra curiosamente aquecida algumas vezes).  Arrumo os travesseiros com delícia porque é um ânimo a mais para namorar. Caminho de um lado a outro, concentrado. Trocar a roupa de cama é sempre reinaugurar o quarto.  Transformo a disposição do tecido num bilhete de amor. Desde a minha infância. Sou uma palavra dentro, bordada.
  A solidão foi meu laboratório. Minha dança com o espelho. Cada ato, cada gesto, cada atitude insignificante representava a preparação para receber alguém. (...)   Os casais que moram juntos não entendem o quanto são felizes. Como é fácil selar a paz dormindo na mesma cama. Uma hora vão suspirar de ternura no meio da madrugada ou esticar o braço ao longo do outro corpo e recompor a distância.  Fácil, fácil, por isso a proximidade é desprezada.
 Durante o namoro, é preciso avisar, marcar hora, entrar em acordo. A conversa segue um ritmo nervoso, um atentado violento ao pudor, que logo esbarra numa reclamação e suspeita.  Tanto que os namorados, ao se encontrarem, não têm direito de trabalhar ou se isolar em seus passatempos. É um insulto. Compreendido como um desinteresse. Um dos dois se enxergará preterido, seja pela televisão, seja pelo computador.  Os casados não aparecem, estão lá, com a chance permanente de comover.  O corredor é o pressentimento do abraço. Não há urgência em finalizar um assunto, nem a obrigação de ser amoroso. É bater papo com ela enquanto toma banho, é servir café para brindar os dentes, é arrumar suas coisas para ganhar tempo.  Os casados estão despertos ao cuidado. Será simples surpreender, basta reparar que acabou a granola dela e trazer um novo pacote do mercado. Com certeza, os grãos formarão um buquê na xícara.  No namoro, qualquer mimo é previsível, uma chantagem. No casamento, toda lembrança é inesperada, uma gentileza.
 Não coloquei nada fora em mim porque poderia usar como enxoval no futuro."


Fabrício Carpinejar

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